Foto: Dida Sampaio/Estadão
Palácio do Planalto 30 de junho de 2021 | 07:08

Pressionado, Bolsonaro cometeu ao menos 10 crimes só nas últimas três semanas

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Alvo da CPI da Covid no Senado, de manifestações que vêm ganhando adesão e com pesquisas pouco favoráveis à reeleição em 2022, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) continua repetidamente apresentando condutas passíveis de enquadramento criminal ou de crime de responsabilidade.

Nesta quarta-feira (30) está prevista a entrega de um superpedido de impeachment que deverá apontar mais de 20 tipos de crimes cometidos por Bolsonaro ao longo do mandato.

De acordo com levantamento feito pela Folha e de consultas a especialistas em direito penal e constitucional, apenas nas últimas três semanas há pelo menos dez tipos de situações em que o presidente cometeu crimes comuns ou de responsabilidade. Em algumas situações, a avaliação é que podem ter ocorrido os dois tipos de condutas.

Alguns casos já são roteiros conhecidos, como a alegação do presidente sobre fraude eleitoral nas eleições ou aglomerações e cumprimentos a pessoas sem uso da máscara. Outros são inéditos, como quando retirou o acessório de uma criança após pegá-la no colo durante evento no Rio Grande do Norte.

Há também inovações em atitudes já comuns, como a de desinformação: além de continuar defendendo o tratamento precoce contra a Covid-19, Bolsonaro passou a afirmar que pessoas imunizadas ou que já tenham contraído o coronavírus não precisam usar máscara. Também disse que o uso do item de proteção seria prejudicial a crianças.

Para embasar sua teoria já antiga de supernotificação de mortes pela Covid, Bolsonaro utilizou dados inexistentes de que o TCU (Tribunal de Contas da União) teria concluído que 50% das mortes por coronavírus teriam sido por outras doenças. Desmentido pelo órgão, o presidente chegou a voltar atrás, mas continuou citando um suposto relatório do TCU em discursos públicos.

Destes casos recentes, a maioria das condutas listadas de Bolsonaro poderia ser enquadrada como crime de responsabilidade por serem incompatíveis com “a dignidade, a honra e o decoro do cargo”, de acordo com os especialistas.

No entanto, como este tipo é mais aberto, parte deles faz a ressalva de que muitos dos atos considerados como quebra de decoro isoladamente não seriam suficientes para justificar a remoção de um presidente do cargo.

Em outras situações, além de possíveis crimes de responsabilidade, há posição majoritária de que o presidente estaria cometendo crimes comuns como o de infração de medida sanitária preventiva, previsto no artigo 268 do Código Penal, ou até mesmo o crime de expor a vida ou a saúde de um terceiro a perigo direto e iminente, previsto no artigo 132.

Para Antonio Santoro, professor de direito processual penal da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), um dos problemas principais é que Bolsonaro age como se não estivesse submetido às leis. “O fato é que o Bolsonaro descumpre constantemente todas as determinações, inclusive de autoridades sanitárias em relação à pandemia, porque ele entende que ele é presidente da República.”

Apesar de episódios de aglomeração sem máscara terem se repetido diversas vezes nas últimas semanas, eles foram contabilizados como uma possível situação de crime no levantamento.

Para o professor de direito penal da USP Victor Rodriguez, as condutas de Bolsonaro isoladamente não seriam justificativa legal suficiente para retirá-lo do cargo, mas as condutas reunidas e reiteradas, sim. Para ele, seria possível reunir as diversas condutas de quebra de decoro em um único pedido, “comprovando que ele sinaliza um desprezo pela gravidade da pandemia”, argumenta.

Já no caso em que retirou a máscara de uma criança, parte dos entrevistados entende que além do crime de infração de medida sanitária, o ato é passível de ser enquadrado como crime de expor a vida ou saúde de alguém em perigo, pois há um perigo concreto.

Para o advogado criminalista Renato Vieira, o simples fato de o presidente saber que expõe as pessoas a perigo com tais atos já configura o crime. Apesar de ter sido o posicionamento minoritário, há também quem considere que seria preciso que o presidente soubesse estar contaminado para tal configuração estar caracterizada.

A professora de direito constitucional da UFRJ Carolina Cyrillo considera o episódio com a criança como um exemplo em que o presidente aumentou o tom. “Ele subiu o padrão de conduta, talvez não discursivo, mas de ação. Ele passou a sair do discurso para a ação em relação a isso.”

No episódio do suposto relatório do TCU, por exemplo, a maioria dos entrevistados não vê crime de responsabilidade ou crime comum, apesar de apontarem a gravidade de o presidente disseminar este nível de desinformação.

Também são consideradas graves as falas relativas a fraudes em eleições, sem que seja apresentada nenhuma evidência, e as ameaças veladas em relação a 2022.

A presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Marina Coelho, considera como possíveis crimes de responsabilidade apenas as acusações de fraudes. “Acho que o mais grave é ele falar que teve fraude, porque isso impacta diretamente em questões concretas.”

Sobre 2022, para ela, seria preciso ter perspectiva concreta de ações que Bolsonaro estaria tomando em relação a isso e que não fossem democráticas, o que não seria o caso do debate legislativo sobre o comprovante impresso do voto eletrônico.

Em relação à desinformação sobre medidas de combate da pandemia, há maior discordância entre os especialistas.

Uma parcela maior considera que falas sobre suposto tratamento precoce ou com informações questionadas amplamente pela comunidade científica sobre a vacina ou de que pessoas que já tiveram a doença estariam imunizadas podem ser consideradas crime de responsabilidade, por serem incompatíveis com o cargo.

Já falas contra jornalistas mulheres, como as que ocorreram recentemente em que o presidente chegou a dizer a uma jornalista para que ela nascesse de novo e que ela só fazia perguntas idiotas, ou quando mandou uma repórter calar a boca, foram considerados tanto crime de responsabilidade quanto possíveis crimes contra a honra.

O professor de direito constitucional da UnB (Universidade de Brasília) Mamede Said Maia Filho diz que a pressão vinda pela CPI e os atos que pedem o impeachment potencializaram o nível de agressividade de Bolsonaro. “Ele acusou o golpe [contra o sistema eleitoral], claramente. Isso se intensifica mais ou menos a partir da decisão do Supremo sobre o Lula, que é um adversário que concorre de igual para igual com ele.”

Para a professora de direito penal da FGV, Raquel Scalcon, o presidente constantemente viola o artigo da quebra de decoro, por ser um tipo mais amplo. Ela destaca, contudo, que é preciso se atentar ao fato de que muitos brasileiros apoiam tais falas.

“O fato é que nós temos um outro problema, que é por que muitos eleitores do Brasil realmente se sentem representados por este tipo de discurso violento e não democrático. Temos um problema muito maior se isso é ou não crime”, diz.

Veja abaixo situações nas últimas três semanas que poderiam ser enquadradas como crime de responsabilidade ou crime comum.

?SAÚDE PÚBLICA E CRIMES COMUNS
1. Aglomerações (diferentes episódios)

Cumprimentar pessoas sem máscara e promover aglomerações sem observar medidas sanitárias. Em junho, isso ocorreu em agendas públicas nos estados de Goiás, Espírito Santo, São Paulo, Pará, Rio Grande do Norte e Santa Catarina

Artigo 268 do Código Penal: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa.
Artigo 9 da Lei 1079/1950: Crime de responsabilidade, quebra de decoro
2. Incentivar que terceiro retire máscara

24.jun: Bolsonaro indicou a uma menina que tirasse a máscara do rosto, em evento em Jucurutu (RN)

Artigo 268 do Código Penal e Artigo 9 da Lei 1079/1950
3. Retirar máscara de terceiro

24.jun: Em evento em Jucurutu (RN), Bolsonaro retirou a máscara de proteção de uma criança

Artigo 132 do Código Penal: Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. Pena: detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Artigo 9 da Lei 1079/1950
CRIMES DE RESPONSABILIDADE
4. Acusações sobre fraude eleitoral, sem apresentar provas (diferentes episódios)

9.jun: “Eu fui eleito [em 2018] no primeiro turno, eu tenho provas materiais disso, mas o sistema, a fraude que existiu, sim, me jogou para o segundo turno”

17.jun: “Mais que desconfio, eu tenho convicção [de] que realmente tem fraude. As informações que nós tivemos aqui —talvez a gente venha a disponibilizar um dia— é que, em 2014, o Aécio ganhou as eleições, em 2018, eu ganhei em primeiro turno”

5. Ameaças veladas sobre 2022 (diferentes episódios)

17.jun: “Vamos respeitar o Parlamento brasileiro. Que, caso contrário, teremos dúvidas [nas] eleições e podemos ter um problema seríssimo no Brasil. Pode um lado ou outro não aceitar, criar uma convulsão no Brasil.”

21.jun: “Só na fraude o nove dedos volta. Agora, se o Congresso aprovar e promulgar [a PEC], teremos voto impresso. Não vai ser uma canetada de um cidadão como este daqui, que não vai ter voto impresso. Pode esquecer isso daí”

7. Desinformação sobre a vacina e máscara (diferentes episódios)

9.jun: “[Remédios do chamado tratamento precoce] não têm comprovação científica. E eu pergunto: a vacina tem comprovação científica ou está em estado experimental ainda? Está [em estado] experimental”

10 .jun: “Ele [Queiroga] vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para tirar este símbolo que, obviamente, tem a sua utilidade para quem está infectado”

15.jun: “Então, olha só, a pessoa que tomou vacina, se alguém quer que ela não seja dispensada do uso de máscara, essa pessoa não acredita na vacina. É uma pessoa, aí sim, negacionista”, em entrevista via internet à RIC TV, afiliada da Record em Rondônia. Disse também que a Pfizer “tem bem mais credibilidade que uma outra que foi distribuída há pouco tempo aqui e continua sendo distribuída”.

24.jun: Ao falar contra o uso de máscaras por crianças pequenas, de 2 ou 3 anos, afirmou: “Pergunte para o seu médico se isso é saudável ou não. Procure puxar a máscara e ver se ela está respirando pela boca ou pelo nariz. Se eu estiver errado, semana que vem eu me desculpo aqui, tá?”, em live semanal

8. Defesa do tratamento precoce (diferentes episódios)

11.jun: “Tomei a hidroxicloroquina. Talvez eu tenha sido o único chefe de Estado que procurou um remédio para esse mal.”, em evento no Espírito Santo.

21.jun: “Tudo o que eu falei sobre a Covid, infelizmente, para vocês, deu certo. Tratamento precoce salvou a minha vida. Muitos jornalistas falam comigo reservadamente que usaram hidroxicloroquina e ivermectina. Por que vocês não admitem isso?”

9. Fala incompatível com o cargo (diferentes episódios)

28.jun: “LÁZARO: CPF CANCELADO!”, escreveu o presidente em uma rede social, após a polícia capturar e matar o criminoso. Antes havia escrito, em rede social, que “Lázaro, no mínimo preso, é questão de tempo”.

Crimes de responsabilidade, conforme a Lei 1079/50 e artigo 85 da Constituição Federal de 1988, em sua maioria por conduta incompatível com o decoro do cargo ou também por agir contra a probidade na administração. Em alguns destes episódios, especialistas apontaram outros artigos da lei de impeachment e até mesmo crimes comuns, mas essas posições foram minoritárias.

10. Ataques contra a imprensa (diferentes episódios)

21.jun: “Essa Globo é uma merda de imprensa. Vocês são uma porcaria de imprensa. Cala a boca, vocês são uns canalhas”, disse o presidente durante agenda em Guaratinguetá, no interior paulista.

25.jun: “Para de fazer pergunta idiota, pelo amor de Deus, nasça de novo você. Ridículo, tá empregada onde? vamos fazer pergunta inteligente, pessoal”, disse Bolsonaro para uma jornalista em Sorocaba.

Artigo 9 da Lei 1079/1950: Crime de responsabilidade, quebra de decoro
?Artigo 139 de Código Penal: Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação. Pena: detenção, de três meses a um ano, e multa.

Géssica Brandino e Renata Galf/Folhapress
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