3 novembro 2024
Cerca de um terço do espaço aberto para aumento de gastos com a aprovação da PEC (proposta de emenda à Constituição) dos Precatórios não deve ir para as famílias mais carentes, via Auxílio Brasil. A medida deve reservar R$ 31 bilhões para atender interesses políticos e corporativos, por meio de emendas, financiamento de campanha e desoneração de grandes empresas.
Os cálculos são do economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper e um dos criadores do teto de gastos.
Ao contrário do que diz o governo, que avalia que o espaço aberto com o drible no teto seria de cerca de R$ 91,5 bilhões, Mendes estima que ele será de R$ 106 bilhões, calculando um INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) de 9,5% este ano, o que reajustaria o valor para cima.
Essa abertura viria da mudança de indexador do teto de gastos e do não pagamento de precatórios. Desse total, R$ 26 bilhões já seriam para reajuste de benefícios sociais, por conta do aumento da inflação.
Dos R$ 80 bilhões que sobram, R$ 47 bilhões vão para o Auxílio Brasil e R$ 2 bilhões para gastos mínimos com saúde. Sobrariam, portanto, R$ 31 bilhões para emendas de relator, financiamento de campanha e prorrogação de desonerações para grandes empresas.
“A desoneração da folha é outra má notícia. Ela custa caro, não tem efeito de criação de empregos, aumenta a margem de lucro das empresas, distorce incentivos e ainda fomenta a burocracia no pagamento de impostos”, diz Mendes.
Para aumentar sua popularidade, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) trabalha para viabilizar o Auxílio Brasil, benefício social que deve ter valor mensal mínimo de R$ 400 e substituir o Bolsa Família.
Para que isso aconteça, no entanto, o presidente depende da aprovação da PEC dos Precatórios. A proposta de emenda à Constituição, que cria um teto para pagamento das dívidas judiciais reconhecidas, é considerada o plano A do governo para o novo auxílio.
A medida foi aprovada em primeiro turno na madrugada da última quinta-feira (4), sendo que a diferença foi de apenas quatro votos. Com a aprovação apertada, o governo teme que ela seja barrada no segundo turno.
O economista afirma que em um momento de situação fiscal delicada, como o atual, o governo deveria ter trabalhado de outras formas para abrir espaço para aumentar os benefícios do novo Bolsa Família, compensando parte do choque inflacionário que afeta sobretudo os mais pobres e que, em partes, se deve à gestão problemática da política econômica.
Segundo Mendes, também é preciso olhar para o que está acontecendo com as instituições, que estabeleceram um sistema de emendas de relator que deu ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), um poder de fogo fora do comum.
“A aprovação da PEC deu mais um passo para destruir o teto de gastos e as regras regimentais da Câmara.”
“Inventaram emendas, fizeram o diabo, tudo sem limites. As regras na democracia existem para que o jogo seja equilibrado, não para concentrar poder em um grupo que faz o que quer. Com dinheiro na mão e capacidade para destruir regras, os parlamentares que controlam o governo fazem tudo com interesses de curto prazo”, completa.
Para ele, além dos efeitos econômicos, as emendas de relator devem ter efeito negativo sobre a renovação da representação política nas eleições do ano que vem, já que ficará mais fácil para que os parlamentares se reelejam após beneficiarem suas bases.
MESMO SEM PEC, DÁ PARA REFORÇAR BOLSA FAMÍLIA, DIZEM ECONOMISTAS
Embora crítico ao teto de gastos, o economista José Luis Oreiro, da UnB (Universidade de Brasília), destaca que o governo não precisaria furar o teto e lançar mão dos precatórios para aumentar o auxílio aos mais pobres.
“O próprio ex-presidente Michel Temer disse recentemente que a solução constitucional pra viabilizar o Auxílio Brasil seria declarar estado de calamidade pública, sem obrigar o governo de romper o teto de gastos.”
O que não seria possível, desta forma, seria aprovar as emendas de relator, diz o economista. “Os deputados que aprovaram a PEC dos Precatórios não teriam dinheiro para fazer politicagem em seus redutos eleitorais. A preocupação deles nunca foi o povo passando fome.”
“No fim de 2020, eu e outros economistas já dizíamos que era preciso renovar a emenda do estado de guerra, para permitir o pagamento do auxílio emergencial. Se isso tivesse sido feito, não estaríamos na situação atual de ver pessoas buscando comida no lixo.”
A economista da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Tatiana Roque avalia que o teto de gastos já não funcionava, mesmo antes da pandemia.
“O governo está usando a chantagem de combater a pobreza de forma mentirosa, destruindo um programa excelente, como o Bolsa Família, cujo reajuste poderia ser feito flexibilizando o teto e acabando com as emendas de relator”, diz ela, que também é vice-presidente da Rede Brasileira da Renda Básica.
“Estão comprando o Congresso inteiro e usando as pessoas de menor renda como desculpa.”
Ela ressalta que apenas o acerto para recalcular a inflação que reajusta o teto de gastos —passando os meses de referência de junho a julho para janeiro a dezembro— já poderia ser útil para recalcular o auxílio do novo Bolsa Família.
A economista considera, ainda, que a discussão atual sobre rombo no teto de gastos já demonstra que a regra fiscal não deveria ter sido aprovada pelo então presidente Michel Temer.
“Constitucionalizar uma medida de fiscal dessa forma não existe. O Brasil já tem leis nesse sentido, e o teto foi colocado para colocar os gastos sociais em disputa uns contra os outros.”
Roque destaca que a votação em segundo turno da PEC dos Precatórios é a chance de evitar que o governo dê um calote em credores que já ganharam seus direitos de receber na Justiça.
“Toda essa confusão comprova que a política econômica está totalmente à deriva e nada do que foi prometido pelo [ministro da Economia] Paulo Guedes, mesmo que eu discorde, foi feito. É uma catástrofe.”
O texto-base da PEC dos Precatórios foi aprovado em primeiro turno ainda na madrugada, por 312 votos a 144. Agora, os deputados devem analisar propostas que modificam o documento, que passa por um segundo turno de votação.
Em seguida, o texto segue para a apreciação do Senado, onde é preciso que tenha o apoio de ao menos 49 senadores, também com dois turnos de votação.
Douglas Gavras/Folhapress