Foto: Reprodução TV Câmara Municipal de Salvador
Felippe Silva Ramos: Desgaste com Ocidente conflita com intenção de demonstrar neutralidade 22 de abril de 2023 | 10:07

Ao errar dosagem em crítica aos EUA, Lula propaga discurso russo sobre guerra, por Felippe Silva Ramos*

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A guerra da Ucrânia teve início incontroverso quando o presidente russo Vladimir Putin ordenou a invasão terrestre do país em 24 de fevereiro de 2022. A Rússia violou o direito internacional ao atacar e invadir um país soberano sem autorização da ONU, sem ter sido atacado primeiro, visando a conquista territorial, com amplo uso de mercenários e com comprovados crimes de guerra cometidos. A Ucrânia montou uma surpreendente resistência com decisivo apoio militar e econômico dos americanos e europeus.

A Constituição brasileira estabelece em seu artigo 4º que o Brasil deve reger-se nas suas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, da autodeterminação dos povos, da não intervenção, da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos. Ao invadir a Ucrânia, a Rússia confrontou tudo isso. É correto, portanto, que o Brasil, desde o governo anterior, tenha votado junto à maioria dos países para condenar a agressão russa nas Nações Unidas.

É positivo que o presidente Lula manifeste interesse em promover a paz. No entanto, contrastando com sua intenção declarada, o presidente tem repetido que russos e ucranianos são igualmente culpados pela guerra e enfatizado que EUA e União Europeia estimulam o conflito. Disse isso em visita recente à China e ao receber em Brasília o ministro russo das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, na segunda-feira, 17.

O Brasil ganha ao manter boas relações com os dois lados geopolíticos da disputa na Ucrânia. Da Rússia, o país adquire a maior parte dos fertilizantes que a agroindústria necessita. Em 2021, antes de a guerra eclodir, foram comprados 3,5 bilhões de dólares em fertilizantes, respondendo a 23% de nossas importações no setor. Dos Estados Unidos, o Brasil recebe a maior parte dos investimentos estrangeiros diretos (IED). Empresas americanas representam cerca de um quinto do estoque de investimentos no país, ao redor de 145 bilhões de dólares. Mas ao reproduzir a narrativa russa sobre a guerra, o presidente desequilibra a balança em favor do lado agressor.

É certo que, quando um conflito alcança um impasse, a busca da paz requer menos a identificação de culpados e mais a construção de soluções pragmáticas negociadas entre os beligerantes. EUA e União Europeia são aliados da Ucrânia e a China é percebida como aliada da Rússia. Nesse contexto, países inequivocamente neutros podem ser bem-vindos para oferecer bons ofícios.

O Brasil se posicionava bem para a tarefa. A vitória de Lula nas eleições em 2022 foi celebrada nas principais capitais do globo. O presidente Joe Biden, dos EUA, se animou com o retorno do Brasil aos protocolos diplomáticos e à normalidade democrática. A pressão americana foi importante, inclusive, para dissuadir oficiais das Forças Armadas do apoio a tentativas de desestabilização contra o governo recém-eleito. Europeus estavam ansiosos pela volta de um presidente com compromisso com a agenda ambiental. É incompreensível que o presidente tenha escolhido confrontar o Ocidente no tema geopolítico de maior relevância.

Lula já havia demonstrado sua habilidade política e diplomática em mandatos anteriores (2003-2010). Com essa memória positiva, esperava-se que o presidente fosse capaz de reproduzir sua capacidade para dialogar com todos sem perder de vista os princípios mais basilares da nossa diplomacia e política externa. Em 2003, por exemplo, Lula notabilizou-se por criticar a invasão unilateral do Iraque pelos EUA, ao mesmo tempo em que mantinha relações cordiais com o então presidente americano, o republicano George W. Bush. Esperava-se postura similar no trato com Vladimir Putin.

Lula erra, portanto, ao insistir em equalizar culpas tão claramente desiguais. Queima também pontes críticas: a forte reação americana às recentes declarações do presidente demonstra que o Brasil passou a ser percebido como ator hostil ao Ocidente no tema.

Ainda é possível corrigir a rota. Lula recalibrou seu discurso imediatamente após as repercussões negativas de sua retórica e defendeu a integridade territorial ucraniana. O presidente Lula alimentou muitas expectativas ao anunciar que o Brasil estava de volta ao cenário mundial. Espera-se que esse retorno seja o do Brasil que consegue equilibrar nossos valores com o necessário pragmatismo da política. Para tanto, o presidente precisa evitar que seu discurso contradiga o que efetivamente a nossa política externa tem buscado.

* Felippe Silva Ramos é doutorando em Sociologia na New School for Social Research de Nova York e autor do livro “A política externa brasileira e a construção da América do Sul” (Edufba, 2015).

Felippe Silva Ramos*
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