30 outubro 2024
Ex-policial federal, ex-promotor público, professor de direito penal e desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), Geder Luiz Rocha Gomes é coordenador executivo e um dos palestrantes do I Encontro Internacional de Execução Penal, que acontece nesta quinta (03) e sexta (04), em Salvador. Entre os principais temas abordados no evento, organizado pelo TJ-BA, por meio da Universidade Corporativa (Unicorp), está a situação dos presídios na Bahia e no Brasil, além da forma como a Justiça deve tratar presos com doenças mentais, tema de estudo do magistrado.
Nesta entrevista exclusiva ao Política Livre, Geder Gomes, que é representante do Brasil no Comitê Permanente da América Latina de Prevenção ao Crime, órgão ligado à Organização das Nações Unidades (ONU), fala sobre o encontro e de questões atuais, a exemplo os altos índices de violência na Bahia e da situação prisional no Estado. Ele faz elogios à transparência do governo baiano na divulgação de dados oficiais.
O desembargador também responde a questionamentos sobre temas polêmicos, a exemplo do fim das audiências de custódia, medida defendida por parte da classe política, e a descriminalização do uso de drogas no Brasil. Em outro momento da entrevista, ele defende com afinco, citando a própria experiência teórica e prática, o desarmamento da população.
Geder Gomes avalia ainda a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) e defende o nome de um baiano para o Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Confira abaixo a íntegra da entrevista:
Política Livre – O senhor está coordenando o I Encontro Internacional de Execução Penal, que acontece esta semana, em Salvador. O que será debatido no evento?
Geder Gomes – É um evento promovido pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) em parceria com o Instituto Brasileiro de Execução Penal e com o governo da Bahia, por intermédio da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Teremos o primeiro encontro internacional de execução penal realizado aqui e o décimo encontro nacional, que já é uma tradição. Vamos tratar dos 35 anos da Constituição brasileira e a execução da pena no Brasil. Então, vamos falar de muitos temas interessantes. Primeiro, vamos abrir o evento, na quinta-feira (03), com uma conferência internacional do diretor do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento do Delinquente, com palestra do diretor da entidade, Douglas Durán, juiz da Corte de Costa Rica. Vamos ter ainda personalidades como o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, palestrantes da Universidade de São Paulo (USP) e outros nomes do Brasil inteiro e da Bahia. O tema central, posso dizer, será tratarmos da questão penitenciária no Brasil, com seus avanços e dificuldades, analisando a precariedade do sistema prisional. Vamos abordar a questão da Medida de Segurança, que hoje é um tema central principalmente a partir da resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para que os hospitais de custódia e tratamento sejam fechados no país (até 2024).
Esse tema da Medida de Segurança será tratado pelo senhor no evento e foi abordado no seu mais recente livro…
Sim, publiquei o livro fruto de uma pesquisa de pós-doutorado feita na Itália justamente sobre esse tema. Por que a Itália? Porque lá foi o berço da reforma antimanicomial do mundo, a partir dos anos de 1970, com uma experiência exitosa de que é possível tratar as pessoas com doença mental que praticaram crime sem conotação de prisão. Até porque a razão do cometimento do crime por essa pessoa é a doença mental. Logo, a origem da motivação é a doença. Esse é um tema bastante debatido, com o envolvimento muito intenso da classe médica. Boa parte dos psiquiatras entendem o que estou dizendo, mas há uma outra parte que prefere trabalhar com hospitais de custódia como referencial. Mas há uma tradição que está sendo rompida no Brasil de operarmos com esses hospitais de custódia. A resolução do CNJ causa uma boa discussão porque ela fixa prazo para que se cumpra a lei que tem 20 anos no Brasil, que determinou o fechamento dos hospitais de custódia e psiquiátricos para presos. Centenas já foram extintos no Brasil.
Como está esse quadro na Bahia?
Na Bahia tem evoluído também, com o fechamento de hospitais de custódia psiquiátricos. Aliás, quando se analisa a fundo essa questão, se coloca uma outra polêmica. A grande questão é que o perfil das pessoas que estão em hospitais de custódia é de perfil carente, de gente sem assistência, sem o acompanhamento de familiares, que não tiveram acesso a remédios e tratamento adequado e acabam rompendo a fronteira e praticando o crime. Quem tem a doença, mas está num núcleo familiar estruturado, tem recursos financeiros, dificilmente rompe essa fronteira. Vamos debater essa questão no evento com diversas outras autoridades no assunto.
Quais outros temas serão tratados no evento?
Vamos tratar de temas como o monitoramento eletrônico; a situação da Defensoria Pública; direitos humanos; a segurança na execução penal; a discussão sobre o indulto, que vem sendo modificado nos últimos anos; estratégias contra a superlotação carcerária; o papel do sistema penitenciário federal, que contribuiu para que se reduzisse em muito as rebeliões com o isolamento de lideranças do crime organizado. E todo esse debate vai acontecer em um momento importante, no qual o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou índices interessantes sobre violência e criminalidade, inclusive na área doméstica. São assuntos palpitantes e o Tribunal de Justiça da Bahia, por meio da Universidade Corporativa (Unicorp), demonstra que não se reserva apenas ao papel de julgar, mas também de difundir conhecimento. O presidente da nossa Corte, desembargador Nilson Castelo Branco, e o diretor-geral da Unicorp, desembargador Mário Albiani, estão de parabéns por essa iniciativa, trazendo para a Bahia nomes como o da professora Anabela Rodrigues, que é uma autoridade das mais conhecidas na Europa na área da execução penal e foi diretora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal. Portanto, vamos ter uma visão da América Latina, da Europa e do Brasil como um todo num evento com expoentes das áreas debatidas.
Por falar na questão da segurança, dados de 2023 apontam a Bahia na liderança quando o assunto é violência. Como o senhor analisa esse cenário?
A primeira coisa que temos que ressaltar é que a Bahia é transparente quando informa seus dados sobre segurança. Outros estados não fazem isso no mesmo nível de transparência. Quando pegamos números comparativos entre estados grandes da federação e a Bahia, vamos ver uma diferença que no mínimo dá para questionar. Como um estado com uma população maior vai ter um número de ocorrências menor sem a mesma transparência? Em segundo lugar, o sistema de coleta e divulgação de dados é diferente. Em São Paulo, se conta como evento. Ou seja, uma situação em que houve 15 homicídios num evento é contatada como um evento, enquanto na Bahia existe a individualização, ou seja, a conta é de 15 homicídios. Isso dá uma distorção. Estou dando um exemplo – não sei se foi corrigido isso, pode até ter sido. Mas isso também não quer dizer que a Bahia não seja um estado violento. A violência é um fenômeno nacional complexo, com razão social e diversas outras questões. Então, não é um assunto para se ter uma visão simplista. Se fosse assim, também seria de simples solução.
Em relação ao sistema prisional, como está a Bahia na comparação com outros estados?
A Bahia tem números de destaque positivo nessa área. Nós temos em torno de 15 milhões de habitantes e na faixa de 15 mil presos. É a menor taxa de encarceramento proporcional do país, ou seja, de acordo com números internacionais considerados razoáveis pela própria ONU. Temos um programa de penas alternativas que é um dos mais destacados do Brasil, com mais ou menos isso 15 mil pessoas, o que dá equilíbrio à população prisional. Isso permite que a Bahia trabalhe hoje com um numero de vagas quase na mesma proporção dos presos, o que facilita a gente ter um sistema um pouco mais administrável. Por isso se percebe um número baixíssimo de rebeliões na Bahia. Agora, embora quantitativamente estejamos bem, qualitativamente precisamos dar um salto nos serviços penitenciários. Porque as carências do sistema permitem que o próprio crime tutele parte dessa população prisional e termos, muitas vezes, o comando da criminalidade de dentro das unidades prisionais, o que também é um fato nacional. Isso tem que ser monitorado constantemente. Não pode dar diagnóstico hoje e achar que está confortável ou caótico.
Para endurecer o combate ao crime, muitos políticos têm defendido o fim das audiências de custódia. O ex-governador Rui Costa (PT), atual ministro da Casa Civil, costumava se queixar, quando questionado sobre a violência na Bahia, que a polícia prendia e a Justiça logo mandava soltar. O senhor acha que esse é o problema?
O ex-governador buscava retratar o que o próprio eleitor e cidadão comum pensa, pois existe essa visão simplista que é desmontada pela observação mínima dos números. Primeiro, é lógico que a polícia prende e quem deve soltar, se for o caso, é a Justiça. Mas o sentido dessa frase é que existiria uma certa benevolência ou tolerância quando não deveria haver. A audiência de custódia é um instituto que visou corrigir diversas distorções. Antigamente você tinha a prisão do individuo que era colocado em uma delegacia, sem controle sobre isso, o que gerava os abusos que ocorriam com o cidadão que porventura não deveria estar ali. Essa pessoa só ia ter audiência com o juiz um ou dois meses depois. Enquanto isso, estava submetido à violência que delegacias superlotadas proporcionavam. A delegacia deve ser um lugar de passagem. Além disso, esse sujeito que porventura não deveria estar ali sofria também com situações de corrupção entre policiais corruptos e advogados que não fossem assim dos mais católicos. Isso sem falar nas questões de logística, de transporte, de uma delegacia. Depois da audiência de custódia, onde o preso tem que ser apresentado em até 24 horas a um juiz, promotor, defensor, o resto muda. Você quebra toda essa cadeia de problemas. Se é para ficar preso, o cidadão vai direto para o sistema prisional. Se é para soltar, evita todo o constrangimento para a pessoa. Então, os benefícios desse instrumento são muito maiores. As estatísticas demonstram que, das situações legais envolvendo violência contra pessoa e crimes graves, em mais de 80% dos casos o acusado permanece preso depois da audiência de custódia. Geralmente, quem é solto são aqueles que seriam soltos depois pelo juiz um ou dois meses após a prisão. Mas entendemos esse sentimento da população e é claro que existem casos que podem fugir à regra, mas são exceções.
O senhor acredita que a descriminalização do uso e da venda de drogas pode ser uma solução para resolver o problema da violência?
Esse tema é muito polêmico e precisa de estudos para que se possa manifestar, coisa que não temos. O que temos hoje é uma tradição dos anos 1980 inaugurado na era Ronald Regan (ex-presidente dos EUA) de que o enfrentamento ao crime do tráfico de entorpecentes deve ser feito ao modo de guerra. Milhões foram gastos e milhares morreram e não temos o controle, só a expansão das drogas. Ou seja, o modelo não demonstrou que atingiu a finalidade para a qual se propunha. Mas existe outro modelo, o de descriminalizar, tratar como problema na área de saúde, instrumentalizar o Estado para a redução de danos à população. Veja o exemplo da Cracolândia em São Paulo, que é complexo. Temos lá uma comunidade enorme de pessoas que não estão presas, que podem até ter passagem pelo sistema prisional, mas retornam e fica evidente que há ali uma questão de saúde pública. Mas acho que você não pode simplesmente descriminalizar sem antes fazer um estudo profundo e científico sobre o tema. Infelizmente, no Brasil, estudos sobre política criminal acadêmicos são tratados como roteiro de poesia e não temos aprofundamento, como ocorre em outros países envolvidos, que se aproveitam disso para a adoção de medidas legislativas.
Passamos por um momento muito forte de polarização política no país. E um dos temas que contribuiu para isso foi a questão do armamento ou desarmamento da população. O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) defendia e adotou medidas para facilitar o acesso de armas, afirmando que isso contribui para reduzir a violência. Já o atual governo Lula (PT) vai no sentido oposto. Qual a sua posição?
Minha posição é científica, como professor, como alguém que militou na área criminal a vida inteira. Fui policial federal por oito anos, fui do Ministério Público por 29 anos e estou no Tribunal de Justiça agora como desembargador sempre estudando a área criminal. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado na área criminal e sou professor há mais de 20 anos nessa mesma área. Fui também instrutor de tiro na academia da Polícia Federal em Brasília e tenho, portanto, experiencia teórica e pratica nessa questão. Digo claramente que não vejo nenhum contributivo do cidadão se armar. Todas as estatísticas, em qualquer lugar, demonstram que a presença de armas nas cidades só potencializa a violência e a criminalidade. Quem tem de estar armado são as forças policiais e militares, os organismos de segurança pública. E mesmo assim esses organismos devem investir cada vez mais na área de inteligência, que deve ser instrumentalizada. Veja que a Polícia Federal é um exemplo para o país porque não costumamos ver a instituição agir com troca de tiros ou de forma violenta. Isso porque é feito antes da operação um trabalho científico, de inteligência. A mortandade é muito alta mesmo nas forças policiais quando não se atua com inteligência. Aliás, tem outro fator: mesmo o policial preparado, quando é pego de surpresa em um assalto, é ferido ou até morto em função do fator surpresa. Então, as chances de um cidadão comum armado ter êxito numa reação é ainda menor. Arma só serve para ferir, para matar. Se foi usada na defesa ou no ataque é outra história. Mas a utilidade é essa.
Defensores do uso de arma consideram que as forças policiais não chegam em todo lugar, a exemplo das zonas rurais mais distantes…
Essa é a exceção da exceção, não é a regra. A população do país se concentra, em sua maioria, nos centros urbanos. Não podemos utilizar essa exceção para justificar uma política armamentista.
Como o senhor avalia o instrumento da delação premiada, bastante utilizado nos últimos anos principalmente para a investigação e o julgamento de crimes praticados por políticos?
Eu até escrevi sobre a colaboração premiada há muitos anos, até dizendo, na época, que era possível ser adotada mesmo depois do trânsito em julgado da sentença penal. Depois de todas essas experiencias com colaboração premiada, eu diria que há dois aspectos, um teórico, positivo, e um prático, que se revelou negativo. O positivo, na teoria, é que se trata de um instrumento benéfico para o próprio infrator, que vai ter vantagens, para a Justiça, porque com a colaboração vai se desvendar coisas que talvez a própria Justiça não conseguisse desvendar, e também para a sociedade, que vê situações esclarecidas. Teoricamente, não haveria problemas para a colaboração, que é ato voluntário. O que aconteceu na prática? Vimos primeiro um excesso de aprisionamento. Se prendia para depois se conseguir a delação. Aí começaram a surgir delações das diversas formas, muitas vezes só para a pessoa se livrar ou fazer acordo no processo. Com isso, tivemos distorções. Então, o emprego em massa da colaboração premiada, com vazamentos do que foi dito, muitas vezes questionáveis, demonstrou que não foi aquilo que se buscava na teoria.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido alvo de críticas de parte da sociedade brasileira por, em alguns casos e segundo essas avaliações, exagerar na dose e extrapolar o próprio poder. O senhor concorda?
No Estado Democrático de Direito existe a divisão dos três Poderes adotada pela Constituição, e o Supremo é o órgão máximo da Justiça. Com isso, felizmente ou infelizmente, o Supremo tem a prerrogativa de errar por último. Num Estado Democrático de Direito, há de existir um Poder que seja o derradeiro de dizer as coisas. Poderia ser o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. O constituinte fez a opção pelo Supremo. O Judiciário tem a última palavra. Os recursos próprios para se questionar uma decisão também estão previstos na lei. Não entro nessa política de certo ou errado, cada cidadão pode ter sua opinião. Mas a estrutura constitucional é clara e diz que cabe ao Supremo a última palavra.
Temos magistrados baianos cotados para ocupar uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça (STJ). O senhor acha que eles têm chances?
Eu vejo positivamente a perspectiva e talvez até a possibilidade de um baiano, um desembargador ou um advogado, ocupar espaços nos tribunas superiores. A Bahia é um dos maiores estados do país e o maior do Nordeste e há muito tempo não tem um ministro – a última foi Eliana Calmon, já aposentada, que honrou a magistratura baiana. Então, temos aí sim a perspectiva de talvez ter baiano no STJ e os nomes colocados são qualificados.
Política Livre