'Sair do Supremo é possibilidade, mas não é uma certeza', diz Barroso
Por Mônica Bergamo/Folhapress
28/09/2025 às 08:40
Atualizado em 28/09/2025 às 08:40
Foto: Luiz Silveira/STF

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, se emocionou diversas vezes na semana passada, a última em que ocupou o comando da Corte. Nesta segunda (29), Edson Fachin assume seu lugar.
Em seus últimos momentos em uma das cadeiras mais poderosas do país, o ministro recebeu a coluna para um balanço que não se resumiu à sua gestão de dois anos.
Ele voltou atrás no tempo e falou sobre a Lava Jato e o que pensa hoje da operação. Explicou o voto que deu em 2018 e que contribuiu para que Lula fosse levado à prisão —do qual diz não se arrepender.
Revelou como se reaproximou do agora presidente, e de como o petista acabou conquistando até a sua sogra. E disse que os dois nunca conversaram sobre aquele momento do passado, hoje tão distante. "O presidente é um homem que já esteve tempo suficiente no sereno para entender qual é o papel de um juiz que cumpriu o seu dever de aplicar também a ele o que havia aplicado a outras pessoas", afirma.
Contou como se relacionou cordialmente com Jair Bolsonaro (PL) nos primeiros anos do governo dele e revela que chegou até a indicar um ministro para o mandatário —mas o então presidente optou por outro nome.
Disse que acha inadmissível a discussão de uma anistia antes, durante e logo após o julgamento do ex-presidente. Mas vê com simpatia a ideia de uma redução de penas que beneficie os condenados.
Admitiu que já chegou a conversar com Lula sobre sua saída do STF. E afirmou que a hipótese de ser sancionado pela Lei Magnitsky, que visa sufocar financeiramente os atingidos e já foi imposta ao ministro Alexandre de Moraes, não entra em seus cálculos sobre ficar ou não no tribunal.
"Não tenho muitos medos nessa vida" nem "aflições excessivas", diz Barroso. "O que não quer dizer que as coisas me são indiferentes".
SAÍDA DO STF
Por que o senhor anda chorando tanto?
Eu fiquei emotivo três vezes pelo mesmo episódio, quando relatei que fui a Roraima, neste mês, visitar a Operação Acolhida [de imigrantes venezuelanos]. Lá, um senhor de 80 anos, que já deveria estar repousando na vida, me disse "eu queria agradecer a vocês" [por ser bem recebido no Brasil].
Me emocionou ver as pessoas naquela condição, e ver esse país bonito que a gente tem, que faz essas coisas, que acolhe as pessoas [se emociona novamente].
O país tem uma estrutura social, por outro lado, que excluí brasileiros, que vivem na mesma condição dos venezuelanos que o senhor visitou.
Há muito ainda por fazer no Brasil. Mas estamos andando para a frente, mesmo que não na velocidade desejada.
Eu contratei um economista no Supremo e pedi para ele fazer uma planilha objetiva sobre o Brasil desde a redemocratização, do governo [Fernando] Collor ao Lula 3. Com dados sobre renda, desemprego, reservas internacionais, posição no IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] e índice Gini, que mede a desigualdade.
Nós melhoramos em tudo. E os governos Lula foram, objetivamente, os que tiveram os melhores indicadores. Sou juiz, e juiz não deve ter preferências políticas. Mas este é um fato.
Do ponto de vista da nossa democracia, nós melhoramos?
Os sistemas de representação política se desgastaram em todo o mundo. A economia do conhecimento, decorrente da revolução tecnológica, criou grandes fortunas e alguns achatamentos sociais. As pessoas, em algumas camadas, estão estagnadas.
Houve, ao mesmo tempo, um avanço importante dos direitos das mulheres, das pessoas negras, da comunidade LGBTQIA+, das pessoas com deficiência, das populações indígenas. E a parcela da sociedade que estava no topo, branca, heterossexual e masculina, digamos assim, perdeu a hegemonia.
Tudo isso abriu espaço para o populismo autoritário que, em várias partes do mundo, uniu excluídos e ricos contra um sistema, o da democracia —que é o melhor de todos, mas que ainda não entregou todas as suas promessas.
Gostaria de questioná-lo sobre a sua tão falada saída do STF.
[rindo] Tem tanta gente assim querendo se livrar de mim?
O senhor ainda não decidiu se sairá? Ou já decidiu, mas não fará isso agora?
Sair do Supremo é uma possibilidade, mas não é uma certeza. Eu verdadeiramente ainda não tomei essa decisão.
Quando minha mulher [Tereza] estava viva, eu tinha esse compromisso com ela [de sair do STF depois que deixasse a presidência]. Ela já estava doente, mas a gente tinha a pretensão de passear um pouco, de ter uma vida mais leve.
Essa motivação eu já não tenho mais [Tereza morreu em 2023]. Então estou ainda verdadeiramente pensando no que fazer. Às vezes tenho a sensação de já ter cumprido o meu ciclo [no STF]. Às vezes penso que ainda poderia fazer mais coisas. Estou falando da forma mais franca possível, do fundo do meu coração.
É verdade que o senhor e Lula falaram sobre a possibilidade de ele nomeá-lo para uma embaixada?
Essa hipótese nunca foi aventada. Quando conversamos, o presidente Lula e eu, lá atrás, sobre indicações para o Supremo, eu falei que existia a possibilidade [de sair do STF, o que abriria uma vaga para nova indicação do presidente]. Mas não me comprometi com ela.
MEDO DA MAGNITSKY
O STF dá uma forte proteção institucional aos seus integrantes. A indecisão do senhor em sair ou não da Corte tem relação com a possibilidade de ser sancionado pela Lei Magnitsky já fora do tribunal? O senhor inclusive já teve o visto de entrada no país suspenso.
Se eu disser que ter ou não visto para ir aos EUA é indiferente, não estaria dizendo a verdade. Tenho relações acadêmicas e amigos queridos no país. Então é uma chateação para mim. Agora, eu vivo a vida como ela vem, entende? Tenho convites para ir à França, à Alemanha, à Itália, e a minha vida continua.
Sair ou não do STF, hoje, tem mais a ver com a exposição pública pessoal, sobretudo dos meus filhos e das pessoas com quem me relaciono. Minha mulher sofria imensamente.
A AGU [Advocacia-Geral da União] pagou honorários, como manda a lei, a mais de cem mil advogados. Mas a notícia é que a namorada do Barroso recebeu R$ 300 mil. Tudo isso chateia.
Mas o senhor não tem medo de ser sancionado?
Eu tenho preocupação. Mas isso não tem nada a ver com ficar ou sair [do STF]. Eu não acho que, se ficar, estarei mais protegido. O que eu tinha que fazer [em relação ao julgamento de Bolsonaro] eu já fiz. Eu fui lá [na sessão de julgamento] e sentei do lado deles [ministros que estavam julgando] porque achei que era o meu dever fazer.
Eu tenho preocupações, que considero legítimas, mas não deixo de fazer nada do que devo fazer.
Procuro viver a minha vida com muita autenticidade e tenho fé de que o universo protege as pessoas que se movem por bons propósitos. Por isso, não tenho muitos medos nessa vida. Se vier algo negativo dos EUA, ou de onde quer que venha, vou lidar com a maturidade espiritual de quem faz a coisa certa e entrega para o universo.
Eu não tenho aflições excessivas —o que não quer dizer que as coisas me são indiferentes.
O STF pode impedir que um banco feche as contas bancárias de ministros sancionados pela Lei Magnitsky?
Esse problema ainda não se colocou. E eu não gostaria de falar em tese. A gente deve enfrentar essa situação com os EUA com altivez, mas sem bravatas.
O que achou de Trump dizer que rolou uma química excelente entre ele e Lula?
O presidente Lula é uma pessoa muito agradável e carismática.
Logo que ele se elegeu, veio na minha casa, ainda antes da posse. Minha sogra, que é holandesa, não tinha muita simpatia por ele. Mas, em dez minutos, Lula arrumou uma fã apaixonada.
Ele tem a capacidade de seduzir as pessoas. Podemos ter divergências de política internacional e econômica. Mas tenho admiração e apreço pelo presidente.
PRISÃO DE LULA
Em 2018, o senhor deu um voto no STF que levou o presidente Lula à prisão. O senhor se arrepende?
Absolutamente. O meu voto não teve nada a ver com o presidente Lula. Eu vou explicar, talvez pela primeira vez, o meu voto. E o de outros, porque não foi só o meu voto [que levou Lula à prisão].
É verdade. O ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, votou da mesma forma.
Em um momento muito anterior [à prisão de Lula], em que a Lava Jato desfrutava de muito prestígio como um enfrentamento legítimo e importante à corrupção, vigorava o entendimento de que só era possível executar decisões [de prisão] depois do trânsito em julgado do processo. Demorava tanto que frequentemente elas prescreviam.
Eu procurei o ministro Teori [Zavaski, morto em 2017] e falei "a gente não vai conseguir pegar ninguém desse pessoal da corrupção". Ele concordou comigo. Semanas depois, levou um caso à votação. E, por 7 votos a 4, o Supremo decidiu que a prisão poderia ser efetivada depois da condenação em segundo grau. E, efetivamente, muita gente, que eu acho que merecia, foi presa.
Quando o processo do presidente Lula chegou ao Supremo, ele já havia sido condenado em segundo grau e o STJ [Superior Tribunal de Justiça] tinha confirmado a condenação.
Vamos supor que eu tivesse votado no presidente Lula, que eu gostasse do presidente Lula. Eu sou um juiz. Eu deveria mudar a jurisprudência por querer bem ao réu? A vida de um juiz que procura exercer seu ofício com integridade e sem partidarismo exige decisões que são pessoalmente difíceis.
Note-se que, naquele momento, não havia sobre a Lava Jato as suspeições que depois vieram a ser levantadas. Portanto, eu apliquei ao presidente Lula, com dor no coração, a jurisprudência que eu tinha ajudado a criar.
LAVA JATO
O senhor hoje vê a Lava Jato com outros olhos?
Olhando a operação hoje, com seus acertos e desacertos, eu identifico que havia uma certa obsessão pelo ex-presidente Lula que se manifestou em erros muito claros. Ela revelou um país feio e desonesto. Mas, em algum momento, se perdeu nos excessos e terminou se politizando.
Viver é andar numa corda bamba. Mas às vezes as coisas vão tão bem para o equilibrista que a plateia começa a achar que ele está voando. A vida é feita dessas ilusões.
Se o equilibrista também acreditar que está voando, ele vai cair.
A partir de um determinado momento de grande sucesso da operação, eles [procuradores e Moro] acharam que estavam voando.
O senhor e Lula nunca conversaram sobre o seu voto?
Nunca conversamos sobre esse assunto. Eu acho que o presidente é um homem que já esteve tempo suficiente no sereno para entender qual é o papel de um juiz que cumpriu o seu dever de aplicar também a ele o que havia aplicado a outras pessoas.
Eu sempre tive o desejo e a esperança, pelo menos, de que o presidente assim entendesse. Nunca me senti na necessidade de explicar por que eu cumpri honestamente o meu dever.
Como foi o primeiro reencontro de vocês depois de tudo isso?
Eu reencontrei o presidente pela primeira vez em SP, na casa do hoje ministro [Cristiano] Zanin, que na época era advogado. E tivemos uma conversa muito boa sobre o Brasil, que é a minha obsessão e a dele também. Foi uma conversa ótima, sem nenhum passivo emocional.
E com o ex-presidente Jair Bolsonaro, como eram as conversas quando ele estava no governo?
Eu estive poucas vezes com o ex-presidente. Conversamos brevemente na diplomação dele para o cargo. A uma certa altura, num canto, eu disse para ele: "O cargo mais importante da República é o de ministro da Educação". Ele respondeu: "Quem você sugere [para o posto]?"
Fiz várias consultas e mandei uma lista. O presidente Bolsonaro chegou a anunciar um deles, Mozart Neves, ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco. Mas houve uma imensa reação de seus apoiadores. Ele voltou atrás. E fez o oposto do que eu havia sugerido. Nomeou pessoas totalmente irrelevantes.
Foi a única vez que conversaram?
Em outra ocasião, entreguei a ele o convite para a minha posse na presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Conversamos por um tempo.
O presidente [Bolsonaro], no trato pessoal, é uma pessoa muito simpática. Mas a conversa não fluía em temas relevantes, digamos assim. Eu me lembro que tentei explicar uma das minhas crenças, no voto distrital misto. Mas, no primeiro parágrafo, já não tinha mais a atenção dele.
As interações pessoais eram cordiais. Mas quando me opus, como era meu dever, à volta do voto impresso, ouvi dele diversas grosserias.
Qual foi o ponto de virada na relação dele com o Supremo?
A pandemia [de Covid] talvez tenha sido um ponto de virada, um confronto mais ostensivo. E aquilo,de certa forma, uniu o tribunal.
O Supremo tomou seguidas decisões para que os municípios adotassem medidas de isolamento social, determinou um plano de vacinação. O Supremo teve um papel que salvou muitas vidas.
PERDÃO A BOLSONARO
O ministro Luiz Fux discordou duramente da condenação de Bolsonaro. Como viu o voto dele?
O voto dele legitimou ainda mais o julgamento no sentido de demonstrar que a independência judicial, no Brasil, é absoluta. Cada um vota de acordo com sua convicção e consciência.
Ele sofreu muito. Foi corajoso e acho que está pagando o preço de ter assumido essa posição.
O senhor já disse que se arrepende de ter dito que a frase "nós derrotamos o bolsonarismo" e se desculpou por ela. Mas parece que o bolsonarismo não apenas sobrevive, como tem força para negociar anistia e redução de penas para Bolsonaro.
O poder de julgar é do Supremo. A anistia é competência política do Congresso. São papéis diferentes. Mas é inaceitável cogitar uma anistia antes, durante ou imediatamente após o julgamento.
As relações entre os poderes têm um certo equilíbrio. O deputado [Daniel Silveira] foi indultado [em 2022, pelo então presidente Bolsonaro] um dia depois de condenado. O Supremo derrubou porque era uma violação da separação dos poderes.
Uma eventual anistia pode, portanto, ser derrubada pelo Supremo. Depende de como ela venha e de quando ela venha. Neste momento, discutir anistia me parece inaceitável.
A redução de penas, também em discussão no Congresso, não é uma anistia maquiada?
Não. Ela é diferente. E essa discussão surgiu muito antes do julgamento do presidente Bolsonaro. Começou quando houve a percepção de que as penas dos réus do 8/1 ficaram muito elevadas.
Houve um debate sobre o acúmulo de penas de golpe de Estado com o de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Eu já tinha votado no sentido de que um crime maior, o de golpe, absorve o crime menor. Com isso, os bagrinhos, que não eram os mentores, os financiadores, poderiam sair [da prisão] depois de dois anos e meio, mais ou menos. Tenho simpatia pela ideia.
Mas reduzir a pena de Bolsonaro logo depois de uma condenação parece razoável?
Discutir anistia ou redução de pena antes de o julgamento ser concluído, ou logo depois dele, não me parece ser o melhor senso de oportunidade. Mas a política tem o seu timing.
O que achou dos protestos contra a PEC da Blindagem e a anistia?
Eu vi com bom sentimento a retomada dessa agenda pelo pensamento progressista. Há um tempo atrás, ser contra a corrupção era coisa de direita. Mas ser contra a corrupção não tem ideologia. A integridade vem antes de questões ideológicas.
O STF e, especialmente, o ministro Alexandre de Moraes, sofrem muitos questionamentos. O inquérito das fake news, por exemplo, tem mais de seis anos. Será, ministro, que os senhores, como o equilibrista, não podem também achar que estão voando?
A gente continua se equilibrando, até porque o sistema democrático brasileiro expõe o Supremo, bem como todas as instituições, a permanente julgamento público e crítico. Portanto, a gente se equilibra recebendo pedrada. E, na vida, é preciso prestar atenção de onde estão vindo as pedras.
O ministro Alexandre foi corajoso, teve um custo pessoal elevado e cumpriu um papel muito importante.
A conjuntura do país, sobretudo por força do julgamento do golpe, ainda não era de absoluta tranquilidade institucional para prescindirmos, eventualmente, de algum remédio.
Mas penso que, concluído o julgamento e entrando em ano eleitoral [2026], e na medida em que os riscos democráticos que enfrentamos estão se diluindo, é bastante provável que o relator [Moraes] se convença de que os inquéritos já cumpriram o papel que precisavam cumprir.
Eu reconheço que eles foram prolongados. Mas eles foram necessários.
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