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Cota de isenção fiscal para ciência brasileira encolhe no governo Lula e freia pesquisas
Cota de isenção fiscal para ciência brasileira encolhe no governo Lula e freia pesquisas
Valor dos últimos dois anos ficou na casa de US$ 200 milhões, insuficientes segundo CNPq e entidades
Por Phillippe Watanabe/Folhapress
26/10/2025 às 08:40
Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil | O presidente Lula
A ciência brasileira vive uma situação um tanto paradoxal. Ela se vê irrigada por quantias volumosas de dinheiro para alguns projetos, mas não consegue contar com um mecanismo básico para o dia a dia em um laboratório: a cota de isenção de impostos para importação de material para pesquisa científica. Esse dispositivo tem tido seus valores reduzidos nos últimos dois anos do governo Lula (PT).
Em meados deste ano, por falta de verba, cientistas já se deparavam com dificuldades para importar material sem taxas. Apesar de cobranças de entidades de pesquisadores, a situação não foi resolvida.
A verba mencionada acima é a cota de isenção. Em linhas gerais, por meio do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ligado ao MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), pesquisadores fazem a aquisição de material para suas atividades —desde maquinário até itens mais simples— sem a necessidade de pagar as taxas de importação.
Existe um limite, porém, no valor anual dessa cota. O deste ano é de US$ 229,2 milhões (R$ 1,2 bilhão).
O problema é que o ano ainda não chegou ao fim, mas a cota, sim, ao menos virtualmente. Resta somente 0,7% do valor original (o que equivale a mais de US$ 1 milhão), de acordo com o CNPq.
Chegar aos últimos meses do ano com um valor restante desse tipo poderia não ser visto como um grande problema. No entanto, as dificuldades de acesso à cota se repetem há meses, segundo a Folha apurou.
No início de maio deste ano, a Fiotec (Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde), parceria da Fiocruz, já alertava para que pesquisadores enviassem requisições de importação o quanto antes, porque mais da metade da cota teria sido comprometida.
A reportagem teve contato com pesquisadores de laboratórios da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), da UnB (Universidade de Brasília) e da UFABC (Universidade Federal do ABC) que, entre junho e agosto, já não conseguiam mais fazer requisições para utilização da cota.
O laboratório de Romildo Toledo, pesquisador de materiais e estruturas na Coppe/UFRJ, é um dos que diz ter sido afetado pela falta de cota neste ano. O cientista afirmou que tentava a importação de um difratômetro de raios X, equipamento usado para caracterização mineralógica e bastante comum na química de materiais. A máquina tem valor aproximado de US$ 200 mil (R$ 1,1 milhão).
"O problema é que o imposto é quase o mesmo valor [da máquina]", disse Toledo, que também é diretor-executivo do Parque Tecnológico da UFRJ e ex-diretor da Coppe/UFRJ. Nesse caso, a importação visava a renovação do laboratório, com novo equipamento mais preciso, e com a substituição de maquinário obsoleto e com dificuldade para se encontrar peças de reposição. "A industrialização do Brasil para esses equipamentos não é alta."
A ideia, segundo ele, era tentar novas importações neste segundo semestre, mas, dada a situação, não faria isso.
Romildo, que também foi impactado pela falta de cota ano passado, destacou que ele está longe de ser o único afetado. "Com esses entraves, você retarda o desenvolvimento das pesquisas".
Outro caso com o qual a reportagem teve contato ocorreu na Paraíba. Responsáveis pelo radiotelescópio Bingo —projeto Brasil-China, coliderado no Brasil pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e USP (Universidade de São Paulo)— tentavam importar estruturas metálicas da China, mas tiveram o pedido negado pelo CNPq em julho devido à falta de cota. No ano passado, parte das mesmas estruturas tinha sido importada com auxílio do mecanismo.
A situação do Bingo, planejado para ser o maior radiotelescópio na América Latina, foi resolvida, mesmo sem uso da cota, com auxílio, entre outros, do próprio CNPq, do MCTI, do Governo da Paraíba e do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas).
Mais recursos de um lado, menos de outro
O FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) tem sido a principal fonte de recursos para a pesquisa brasileira, com cifras na casa dos bilhões de reais. A evolução do montante dessa verba injetada na ciência não foi acompanhada, porém, pela cota de importação do CNPq.
"Nós estamos falando de uma irrigação, de 2023 pra cá, que requer mais insumos serem importados. O que não caminhou com a cota que o CNPq oferece a cada ano. Não cresceu de maneira compatível", afirma Francilene Procópio Garcia, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência).
A fala de Garcia é ecoada por nota técnica, a qual a reportagem teve acesso, produzida dentro do CNPq e encaminhada para Ricardo Galvão, presidente do conselho, em abril deste ano.
Segundo a nota, além da demanda já esperada anualmente, "o crescimento do fomento para CT&I [ciência, tecnologia e inovação], a liberação total dos recursos do FNDCT, o Pró-Infra e os PACs da CT&I e da Saúde trouxeram forte aumento de demanda para a cota do CNPq".
Ainda de acordo com a nota, "a abundância de recursos do fomento não resultará na eficiência de seu emprego devido à redução na isenção fiscal, desfavorecendo o atingimento dos resultados esperados da política de investimento em CT&I".
No fim de julho, a ABC (Academia Brasileira de Ciências), a SBPC e a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) enviaram uma carta ao ministro Rui Costa, da Casa Civil, alertando sobre a situação da cota e afirmando que, àquela altura, ela já estava totalmente consumida.
Na carta, as entidades afirmam que se trata de um "entrave crítico ao desenvolvimento científico e tecnológico do país" e que a cota tem um valor absolutamente insuficiente.
"Caso essa cota não seja urgentemente ampliada, os prejuízos para a pesquisa científica brasileira serão irreparáveis. Hoje, cientistas dedicam parte substancial de seu tempo à superação de barreiras burocráticas, quando deveriam estar integralmente voltados às atividades criativas e técnicas que movem a ciência", dizem as entidades.
A Casa Civil confirmou à reportagem que recebeu a carta e, após análise, encaminhou-a ao Ministério da Fazenda e ao MCTI.
Procurada pela reportagem, a pasta da Fazenda indicou que o questionamento deveria ser enviado ao MCTI.
O MCTI, por sua vez, disse que a definição e a liberação de limites orçamentários para importação são competência do Ministério da Fazenda.
A pasta da ciência afirmou que acompanha "com atenção a situação relacionada à cota de importações destinadas à pesquisa científica, reconhecendo a importância desse instrumento para o pleno funcionamento dos laboratórios e projetos de pesquisa em todo o país".
"O Ministério reforça que tem grande interesse em que os recursos destinados à ciência, tecnologia e inovação sejam ampliados de forma sustentável", afirmou o ministério, que acrescentou manter diálogo com outros braços do governo em busca de soluções.
O CNPq reconheceu que o valor atual é insuficiente para a demanda e diz que tenta a liberação de um novo aporte financeiro para a cota ainda neste ano. "Contudo, não há garantias quanto à disponibilização de valores adicionais".
O conselho afirmou que tem analisado todos os casos individualmente e mantido contato para viabilizar o maior número de importações ou minimizar os impactos negativos.
O CNPq disse que busca para 2026 uma cota mínima de US$ 400 milhões, "visando atender à demanda reprimida deste ano". A reportagem questionou o conselho se tal valor seria suficiente, após dois anos com limites consideravelmente inferiores. O CNPq disse que o valor "se deve a questões técnicas e de acompanhamento das demandas durante o ano", que "muitas ICTs [Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação] realizaram suas importações sem utilizar a cota do CNPq" e que "outras alteraram seus projetos ou compraram produtos nacionalizados".
"A expectativa é positiva, e aguardamos que o Ministério da Fazenda divulgue o valor aprovado até o final do corrente ano", declarou o CNPq. "O CNPq é sensível às necessidades dos pesquisadores".
