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As desigualdades raciais são categóricas e duradouras, estúpido!
Elias de Oliveira Sampaio
As desigualdades raciais são categóricas e duradouras, estúpido!
03/09/2020 às 13:33
Atualizado em 03/09/2020 às 13:33
Talvez o maior erro de avaliação para usos e formas de se tentar aplicar o termo “novo normal” para qualificar as diversas facetas da atual conjuntura socioeconômica e político-institucional mundial, é imaginar que as transformações em curso estão surgindo e/ou sendo mais evidenciadas, tão somente, em virtude dos efeitos deletérios causados pela disseminação da covid-19. A crise sanitária causada pelo coronavirus, apesar de seu ineditismo, sua dimensão e sua criticidade, tem sido apenas o elemento catalizador de um conjunto mudanças que vem ocorrendo mais acentuadamente nas últimas duas décadas, particularmente, no campo das tecnologias de informação e comunicação, as quais, tem sido - e por muito tempo ainda serão - as condições necessárias para se chegar a algo verdadeiramente novo nas relações sociais de produção e de consumo tal qual as conhecemos. As tão atualmente populares Amazon, Netflix e Google, por exemplo, estão por aí desde dos anos de 1990.
Fato é que, do ponto de vista das desigualdades raciais, frise-se, mesmo com todo o avanço tecnológico, o que se mantém incontroverso é que o racismo nstitucionalizado continua estruturando a produção, o consumo e, neste momento muito particular, determinando a possibilidade de sobrevivência (ou não) dos mais vulneráveis; quer seja pela histórica inadequação das condições sanitárias em que vivem; quer seja pela dificuldade no acesso a um serviço de saúde eficaz, mesmo em países com robustos e consolidados sistemas públicos como é o caso do Brasil e o seu Sistema Único (SUS). Assim, não me parece ser o mais produtivo apostar nas discussões pouco substanciais que vem sendo travadas entre “novos normalistas festivos” e “zangados negacionistas do novo normal”, uma vez que qualquer ideia mais elaborada ao redor da
possibilidade de existência de novos padrões econômicos, institucionais e sócio comportamentais trazidas à baila por conta da pandemia, exige-se admitir, a priori, que tais fenômenos são resultantes de um continuum nas relações sociais de produção que já estavam presentes no cotidiano das pessoas; impregnando, formatando e ressignificando o seu modo de vida, de trabalho e de conexão político-institucional, independentemente de sua própria vontade, consciência pessoal ou
da sua coletividade mais próxima.
Logo, a questão mais importante é saber quais as ações corretivas mais eficazes que ainda são passiveis de serem operadas “à montante e a jusante” dos marcos da crise do covid-19, à medida que as mudanças mais explicitas e exacerbadas por conta dela, além de não serem novidades de fato, trazem elementos para tornar ainda mais evidente que a ocorrência de todo esse complexo processo de transformação, numa sociedade estruturalmente racista não gera ganhos econômicos mais equitativos, per se. No caso brasileiro, em particular, o que a atual conjuntura crítica tem salientado, ainda mais, é aquilo que tem sido pautado pelo movimento negro nacional nos debates e nos embates em prol da implementação de políticas públicas de promoção da igualdade, desde sempre, é o fato da desigualdade no Brasil ter raça, cor, gênero e lugar de moradia. O diferencial de momento é que todo o mundo globalizado está tendo conhecimento e consciência, em tempo real, que o país que sai do escravismo há mais de 130 anos, chega a posição de décima economia do mundo, é o território geopoliticamente mais importante da América do Sul, membro dos BRICS e relevante player econômico mundial, se mantém, praticamente como antes da abolição, como sendo o caso mais emblemático de desigualdades raciais do planeta.
A rigor, se estabelecermos uma linha de tempo considerando os grandes marcos institucionais de planejamento do Estado para organizar e gerir o sistema produtivo nacional no sentido de uma suposta melhoria do bem estar geral do país, tais como: i) a Mensagem Programática do segundo Governo Vargas de 1951; ii) as intervenções do Governo JK, especialmente na região mais pobre e negra do país, o Nordeste (Sudene); o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), cara referência de planejamento público da era dos governos militares; iv) a fase da exitosa política de estabilização monetária de FHC, após a década perdida de 1980 e v) o maior período de
crescimento econômico com redução da pobreza e distribuição de renda da longeva gestão petista de Lula/Dilma (2003-2015), chegamos a uma desconcertante constatação de que nem as desigualdades socioeconômicas e muito menos as históricas disparidades entre negros e brancos, experimentaram mudanças verdadeiramente sustentáveis em nosso país, a ponto de alterar significativamente a realidade material e político-institucional da maioria da população brasileira que hoje é formada por 56% de descendentes dos negros africanos que foram escravizados por mais de 350 longos e ininterruptos anos.
Ou seja, independente de períodos de normalidade ou de novas normalidades econômicas e políticas, experimentadas durante um espaço-tempo de mais dois terços de todo um século, se contarmos de 1950, é legitimo afirmar que tudo que foi feito pelas elites dirigentes brasileiras, independente da matriz ideológica e do conteúdo das agendas institucionais implementadas em seus respectivos momentos de exercício de poder governamental, não tiveram o êxito necessário para alterar a dura realidade que persegue a história do nosso país, qual seja, o Brasil, desde sua inauguração enquanto um território ocidental peculiar, é orientado por fundamentos de desigualdades raciais que se estabeleceram como elementos estruturantes da sua formação política, econômica e institucional e a característica central que tem presidido e dirigido a construção do ethos e do pathos de sua sociedade. O caso da morte do menino Miguel Otávio, em Recife, é emblemático de todo esse processo porque torna evidente que nada do que foi feito até aqui, em termos de políticas públicas de promoção da igualdade, poderia tê-lo salvado do exercício mais objetivo do racismo estrutural brasileiro que, ao fim e ao cabo, tem sido formatado a partir de territórios muito bem protegidos ao redor da elite branca nacional, quais sejam, “bunkers” residenciais, “redomas” políticas organizacionais e “senadinhos” institucionais e acadêmicos.
Esta é a pedra angular dos problemas brasileiros e, a nosso ver, tem sido o obstáculo primordial e impeditivo de superação de nossa realidade socioeconômica, a despeito de todas as tentativas de mudanças estruturais positivas no processo de desenvolvimento de nosso pais. Por isso, não diagnosticar de maneira correta e não compreender profundamente essa estranha “marca de nascença” que vem se perpetuando na formação histórica de nosso país é legar às gerações vindouras passar mais quinhentos anos fantasiando a possibilidade de existência de “um país do futuro” que, em verdade, jamais chegará. Esta é a única síntese possível que um olhar não
doutrinado pelas narrativas que tem hegemonizados os debates sobre o tema, à esquerda, ao centro e à direita dos espectros político, econômico e acadêmico tem insistido em nos ofertar. Obviamente, que muito tem sido dito, muito tem sido feito e muito tem sido até corretamente problematizado, contudo, a realidade concreta de fins de agosto de 2020, momento em que finalizo esse texto, é que o Brasil possui mais de 3,7 milhões de infectados pela covid-19, com cerca de 120 mil mortos, dos
quais, a sua ampla maioria é formada por homens e mulheres negros e pobres. Nada muito distinto do que vem acontecendo com o povo negro deste país desde o século XVI, mesmo porque, a elite sempre é prodiga em defender que “todas mudanças são muito bem-vindas, desde que as coisas fiquem da mesma forma que historicamente tem sido para a manutenção de seus próprios privilégios”.
Por isso, a minha colaboração neste breve arrazoado é trazer outros olhares epistemológicos que possam agregar ainda mais valor à miríade de construções já elaboradas e em elaboração, para ajudar na estruturação e direcionamento de pesquisas e intervenções institucionais, posto que, ao meu ver, estamos longe de totalizar explicações e entendimentos das muitas peculiaridades do racismo brasileiro e, por isso, ainda não temos todos os instrumentos suficientes para o manejo mais eficaz das situações e problemas a ele contingente. Neste contexto, a problematização apresentada por Charles Tilly em seus trabalhos sobre as noções de desigualdades categóricas e duradouras me parece alvissareira porque ele busca responder, de forma cirúrgica, “os porquês e as consequências do fato de desigualdades sistemáticas e persistentes na vida das pessoas em geral distinguirem membros de diferentes categorias socialmente definidas”, no tempo e no espaço. Grosso modo, sua abordagem aponta para a possibilidade de tratarmos de forma substancial as diversas maneiras de como o desigualdade estrutural opera por sobre processos mais concretos e passíveis de observações empíricas mais palpáveis como aqueles que se desdobram dentro das organizações, instituições e no cotidiano das pessoas, e quais são os mecanismos de reprodução intertemporal, intergeracional e espacial em que isso ocorre, a partir de três preocupações básicas:
i) entender e problematizar aquilo que ele classifica de desigualdades duradouras, isto é, aquelas desigualdades que duram de uma interação social para seguinte, com atenção especial às que persistem por carreiras, vidas e histórias organizacionais inteiras; ii) apontar para a necessidade de se observar pares distintamente bem delimitados, como mulheres/homens, aristocratas/plebeus, cidadãos/estrangeiros e classificações mais complexas baseadas na afiliação religiosa, origem étnica
e racial; iii) Dar atenção especial a categorias limitadas e os pares categóricos, porque fornecem evidências mais claras sobre a operação da desigualdade duradoura em contextos organizacionais e institucionais porque as diferenças categóricas são responsáveis por muito do que os observadores comuns consideram como resultado de variação no talento ou esforço individual. Considerando tais questões, acredito caber-nos profundamente refletir que se os sistemas produtivos hegemônicos que conhecemos já trazem as desigualdades como elementos fundante, a tarefa mais importante a se trabalhar daqui em diante é como continuar a combater de forma mais eficaz e mais efetiva as desigualdades socioeconômicas geradas pelo racismo que estruturou e estrutura as relações sociais no Brasil há 500 anos e que, agora, catalisado pela conjuntura pandêmica, também se reinventa e se ressignifica, tal como o próprio coronavirus que, para continuar a se disseminar, precisa realizar mutações eficientes para não matar todos os seus hospedeiros de uma só vez.
Metaforicamente, inclusive, o coronavirus parece emular o comportamento da elite branca dominante de nosso país que mesmo após mais de 130 de anos de república e do fim do escravismo, se mantem desfrutando dos mesmos privilégios de sempre, em nome dos quais, concorreu para deformar nossa inteira sociedade, através da conformação de desigualdades raciais tão perversamente substantivas e sofisticadas, que correções significativas tem sido de difíceis execuções político institucionais, mesmo em períodos de estabilidade econômica e de exercício de arranjos institucionais supostamente democráticos e progressistas tal como pôde ser verificado nos interregnos democráticos de nossa história e, mais recentemente, pelas iniciativas postas em prática a partir da Carta Magna de 1988. Assim, mesmo não tendo a intenção de ser tão hardcore como foi James Carville, estrategista de Bill Clinton quando cunhou, em 1992, o seu famoso marketing-mantra “É a economia, estúpido! ”, frase política que restou por simbolizar a derrota de George Bush nas eleições americanas daquele ano, tomo por empréstimo essa ideia força para chamar o máximo de atenção possível sobre dois aspectos que não pode ficar de fora de todo esse debate em torno do “novo normal”, qual sejam, as desigualdades raciais são categóricas e duradouras, estúpido!
