23 novembro 2024
Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.
O caso da COVID-19 deverá ficar para a história como uma das maiores lições aprendidas no campo da saúde pública, mas também, e de forma muito importante, para a seara das relações socioeconômicas e político institucionais em todo o mundo. A despeito de ter sido disseminada a partir de classes econômicas e de lugares mais abastados ao chegar no ocidente, o novo vírus deverá continuar infectando, adoecendo e matando pessoas de forma indiscriminada em termos de posição social e espaço geopolítico. Por exemplo, ainda não se tem a mínima ideia de como se dará o comportamento do vírus abaixo da linha do equador, no clima tropical e nas áreas pobres e favelizadas de países como o Brasil.
Nos angustia imaginar qual será o efeito concreto da pandemia em nossas cidades, as quais são fortemente caracterizadas por uma monstruosa desigualdade de condições de vida e de acesso aos serviços de saúde e onde estima-se que 70% dos leitos mais apropriados para o tratamento da doença estão prioritariamente disponíveis para a rede de saúde suplementar (privada), que só atende historicamente apenas cerca de 25% da nossa população. Isto é, a despeito da sabida e comprovada efetividade do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), a rapidez no espraiamento da doença em nível nacional, num território com as dimensões continentais como do nosso país – e de grande carência no simples acesso a água encanada em muitos lugares – pode ser uma situação crítica nunca experimentada pelo Sistema.
Na prática, portanto, não serão apenas colocadas à prova as estruturas físicas e os recursos materiais disponibilizados à emergência pelo SUS, mas significativamente, a robustez do seu modelo de gestão para enfrentar esta crise peculiar, de forma eficaz, considerando tanto a crescente tensão interinstitucional originada a partir do Palácio do Planalto, quanto o fato de que muitas de nossas unidades federativas são maiores e mais populosas que alguns países que não têm conseguido enfrentar adequadamente a situação de pandemia.
Fato é que o caráter pandêmico e a velocidade de propagação da morbimortalidade da COVID-19 têm exigido profundas transformações comportamentais em todo o mundo e vem impondo a necessidade de um verdadeiro “boot” na gestão de todo o sistema socioeconômico. Logo de cara, o “inimigo invisível” colocou em xeque algumas verdades absolutas que vinham sendo reiteradamente defendidas tanto em governos tidos como progressistas (subliminarmente) quanto em governos conservadores (agressivamente), como condição necessária para se chegar, de fato, a um processo de desenvolvimento econômico em nível global. Falamos, mais precisamente, sobre a fantasiosa e recorrente desejabilidade de aplicação de sucessivos superávits ficais – capital financeiro free, frise-se – via instrumentos macroeconômicos cada vez mais ortodoxos, como panaceia à eficiência do uso orçamento público e da gestão das moedas nacionais em prol do crescimento sustentado das economias.
Isto é, o tsunami epidemiológico e sanitário causado pela COVID-19 também está jogando por terra a crença de que a administração dos fundamentos macroeconômicos de players mundiais como o Brasil pode ser feita por uma “gerentocracia” de formação técnica mediana, consumidora de soluções econômicas de prateleira importadas e sob a liderança de atores políticos medíocres, os quais nunca foram capazes da proposição e execução de ações estratégicas que pudessem, de fato, solucionar os efeitos deletérios da iniquidade estrutural de nosso país construídos sobre a égide de 350 anos de escravidão e 130 anos de políticas explícitas de exclusão social e racial. Ou seja, é a desigualdade no acesso a políticas públicas que deveriam ser por natureza universais em qualquer parte do mundo, como é o caso das de saúde, que tem sido o principal vetor para a perda de vidas humanas na atual crise pandêmica e não os efeitos do vírus em si.
Não por acaso, no emblemático exemplo da Itália, um dos aspectos que tem chamado bastante atenção das autoridades sanitárias, para além da avançada média de idade de sua população, é baixa relação da disponibilidade de leitos de UTI por grupo de 10.000 habitantes, comparativamente a outros países desenvolvidos. Sendo assim, a despeito da enorme probabilidade de haver, também, uma tragédia anunciada para as camadas mais pobres da população brasileira – oxalá eu esteja errado – chega a ser irônico observar que a COVID-19 tenha acometido inicialmente os grupos sociais dos circuitos superiores da rica economia italiana pela conjunção de situações tão contraditórias como a longevidade de seus cidadãos e a indisponibilidade imediata de um elemento muito particular de seu sistema de saúde.
Não obstante, tudo nos leva a crer que, em maior ou em menor grau, situações como esta têm se reproduzido em outros países da riquíssima zona do euro e, por isso, a propagação massificada da COVID-19 no ocidente tenha se dado a partir de hospedeiros acostumados a viajar nas classes executivas da ponte área China-Europa-EUA. Com efeito, foi esse caráter inicialmente “elitista” do vírus que fez a grande diferença para motivar a rápida atenção dos agentes políticos e econômicos mais relevantes a respeito dos efeitos da pandemia para o todo sistema socioeconômico, comparativamente a outros momentos de emergência sanitária mundial. Isto é, pela primeira vez na história recente de nosso planeta, riquíssimos territórios detentores de grande concentração de renda e, obviamente, lócus de iniquidades por excelência, não puderam isolar nos circuitos inferiores de suas respectivas sociedades – por menos representativos que esses espaços possam ser do ponto de vista econômico para eles – as consequências mais diretas e nefastas tanto do “democrático” surto epidemiológico, quanto das suas consequências recessivas por sobre as suas economias.
De onde observamos, essa é a explicação principal para a frenética e crescente determinação de “shut downs” de metrópoles inteiras, senão países, e de isolamento social sem distinção de raça e classe – ao menos até agora – como forma mais eficaz de evitar a propagação da doença e os efeitos econômicos dela decorrente. Por isso também, a tour de force que os EUA e a União Europeia têm feito para mitigar os prováveis efeitos da pandemia sobre os fundamentos de suas economias, através da significativa ampliação da liquidez nos seus mercados, algo inimaginável até pouquíssimos dias atrás – frise-se.
Para além disso, inédito acordo político entre republicanos e democratas americanos para a liberação de mais de dois trilhões de dólares para socorrer a sua economia, sugere inclusive, que o principal player mundial parece já ter percebido que tanto os ciclos de negócios, quanto os mercados de trabalho sob sua influência mais direta, já possuem um significativo lastro em plataformas digitais e de toda a sorte de soluções de TIC e IA que podem lhe estar sinalizando para a possibilidade que esta crise tenha como externalidade, no médio prazo, um profundo processo de reestruturação produtiva e, como corolário, uma provável mudança de patamar no nível de produtividade, na demanda por trabalho e na capacidade de oferta daquelas economias que melhor consigam se defender dos efeitos da COVID-19 em seus respectivos sistemas produtivos.
Sendo assim, a pedra de toque para o enfrentamento estratégico desse momento unplugged de produção e consumo, não seria tão somente a garantia de empregos e ocupações nos setores mais tradicionais da economia real tal como a conhecemos hoje, mas sobretudo, a salvaguarda dos rendimentos e do consumo das famílias e da capacidade de investimento privado, especialmente das suas corporações globalizadas de base tecnológica ou grandes consumidoras/fornecedoras de novas tecnologias, de desenvolvimento de novos processos e de produção física e virtual de infraestrutura de ponta para as relações socioeconômicas e comportamentais requalificadas que devem emergir imediatamente no pós-crise.
Isto é, o que nos parece muito importante em todo esse movimento dos governos das principais economias liberais é a sua proatividade na disponibilização “ex-ante” de um considerável montante de recursos financeiros, via políticas fiscais e monetárias expansionistas, para garantir ações estratégicas anticíclicas no sentido de se defender de uma recessão que se avizinha, mas também, se preparar para um desconhecido, mas muito provavelmente oportuno novo momento do sistema capitalista após as incertezas causadas pelo surgimento do coronavírus.
A péssima notícia, para nós brasileiros, é que a dimensão desse debate é algo inimaginável para os policy makers de plantão e esse não parece que será o caminho a ser perseguido pelo Brasil, mais uma vez. O que vimos até agora, além da latente crise institucional que ronda a relação do governo central com os governos subnacionais quanto ao manejo da crise, é que os primeiros movimentos sobre a gestão macroeconômica vindos de Brasília, tanto por iniciativa do Executivo, quanto pelas proposições do Legislativo, têm sido na equivocada direção de aprofundar a redução de garantia de direitos e do rendimento médio dos trabalhadores públicos e privados; da ampliação do endividamento das famílias e do aprofundamento da limitação do poder discricionário do próprio Estado na gestão do orçamento público. Ou seja, pelo que se tem visto até o momento, será apenas um pouco mais do mesmo que vem sendo feito desde 2016 e se aprofundado a partir de 2019.
No entanto, o protagonismo dos governadores e prefeitos das capitais no tratamento das consequências locais da COVID-19 e a rápida decisão pela aplicação das já citadas políticas anticíclicas – à la Mr. Keynes – que vem sendo largamente divulgadas pelos países desenvolvidos para enfrentar a crise, transformaram em pó, de maneira inexorável, toda a narrativa de sustentação da política econômica conservadora e da gestão ultra ortodoxa dos fundamentos da economia brasileira, ora em curso, pelo simples fato de que os manuais de ortodoxia que vem sendo utilizados não tem base de conhecimento, nem instrumentos macroeconômicos eficazes para enfrentar os iminentes e enormes desafios socioeconômicos que serão desdobrados a partir dos efeitos materiais e objetivos da pandemia do coronavírus. Sendo assim, pela velocidade da crise, logo, logo, só nos restará saber se ainda haverá algo de relevante para se encontrar no saco de farinha do “posto ypiranga”.