11 agosto 2025
Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.
Como já destaquei em outros textos neste espaço, nenhum defensor sério da liberdade de expressão, por mais libertário que seja, sustenta que esse valor seja absoluto. Ser um firme defensor dessa garantia essencial à democracia não implica, necessariamente, adotar uma postura radical.
É possível e até desejável que, em certas circunstâncias, haja restrições à liberdade de expressão. A questão central é: quais são essas circunstâncias?
John Stuart Mill propõe como critério o princípio do dano (“harm principle”). Embora haja debates acadêmicos sobre o alcance desse princípio, especialmente ao se tentar aplicá-lo à realidade contemporânea, tão distinta da época de Mill, ele assim escreveu:
“(…) até as opiniões perdem a sua imunidade quando as circunstâncias em que são expressas são tais que a sua expressão constitui efetivamente uma instigação a um ato danoso. A opinião de que os comerciantes de trigo fazem os pobres passar fome, ou que a propriedade privada é um roubo, devem ser deixadas em paz quando simplesmente divulgadas na imprensa, mas poderão incorrer justamente em castigo quando ditas a uma turba exaltada reunida perante a casa de um comerciante de trigo, ou quando distribuídas entre a mesma turba sob a forma de cartazes.”
Na passagem, Mill exemplifica claramente o princípio do dano. A restrição não decorre necessariamente do conteúdo da fala, mas sim das circunstâncias em que ela ocorre. Não se proíbe dizer que “os comerciantes de trigo são ladrões”; a censura só se justificaria se a afirmação, dita diante de uma multidão exaltada, tiver potencial real de causar dano.
O dano a que Mill se refere não resulta do fato de as opiniões serem falsas, ofensivas ou impopulares. A restrição ao ato expressivo só se justificaria se ela incitasse diretamente à violência, ao linchamento ou tiver consequências práticas danosas imediatas, como no caso de perseguição real e concreta a alguém. O foco de Mill está no risco à integridade física de alguém e não no desconforto causado pela expressão.
Esse raciocínio influenciou o juiz Oliver Wendell Holmes Jr., da Suprema Corte dos EUA, que, no julgamento do caso Schenck v. United States (1919), afirmou: “a mais rigorosa proteção à liberdade de expressão não protegeria um homem que gritasse falsamente ‘fogo’ em um teatro lotado, causando pânico.”
Nesse precedente, Holmes formulou o conhecido critério do perigo claro e iminente (“clear and present danger”). Conquanto à primeira vista esse critério pareça ampliar a proteção à liberdade de expressão, sua aplicação prática mostrou como conceitos abstratos podem ser interpretados de formas bastante distintas, inclusive por quem os formulou.
No caso Schenck, o réu, secretário do Partido Socialista, havia distribuído panfletos contra o alistamento militar obrigatório durante a Primeira Guerra Mundial, alegando ser inconstitucional e incentivando a resistência. Ainda que os panfletos não tenham causado tumulto ou dano imediato, a Corte manteve sua condenação com base na Espionage Act de 1917, considerando que havia violado a lei ao tentar obstruir o recrutamento. A decisão foi unânime.
O contraste com Mill é evidente: não havia dano direto nem incitação imediata à violência. Mesmo assim, a fala foi punida, mostrando que o critério de Holmes, naquele momento, era mais restritivo do que o de Mill.
Poucos meses depois, porém, em Abrams v. United States (1919), Holmes mudou de posição. Nesse caso, imigrantes russos distribuíram panfletos em Nova York criticando a intervenção americana na Revolução Russa e pedindo greve geral nas fábricas de munição. Foram condenados por 7 votos a 2, com base no Espionage Act e no Sedition Act, sob a alegação de que estariam incitando sabotagem e prejudicando o esforço de guerra.
A maioria da Corte citou o precedente de Schenck para justificar a decisão. Holmes, no entanto, dissentiu. Em seu voto, ao lado de Louis Brandeis, introduziu a famosa metáfora do “mercado de ideias”: “o melhor critério da verdade é a capacidade de uma ideia ser aceita na competição do mercado.”
Holmes defendeu que o critério do “perigo claro e iminente” havia sido mal aplicado, pois não havia risco real, iminente e substancial de que os panfletos causassem dano. Ele reinterpretou o próprio teste que havia formulado, aplicando-o com mais rigor. Embora não tenha abandonado a doutrina do “perigo claro e iminente”, passou a exigir um grau mais elevado de risco concreto, em linha mais consentânea com o pensamento de Mill.
Esse episódio ilustra bem a tensão entre o que uma doutrina propõe em teoria e o modo como é aplicada, até mesmo por quem a criou. Mostra também como uma ideia, uma vez lançada, pode ganhar vida própria e ser interpretada de maneira que seu criador talvez não previsse ou sequer endossasse. Apesar de Mill ter deixado seus princípios de forma clara, imaginar como ele reagiria hoje em dia a situações limites e inéditas é sempre um exercício especulativo.
Princípios abstratos, como o do dano ou do perigo claro e iminente, são moldados pela cultura, pelo contexto e pela sensibilidade de quem os interpreta. Nesse campo, a resposta definitiva não existe.