Lucas Faillace Castelo Branco

Direito

Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London (KCL), Universidade de Londres, e mestre em Contabilidade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). É ainda especialista em direito tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) e em Direito empresarial (LLM) pela FGV-Rio. É diretor financeiro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e sócio de Castelo e Dourado Advogados.

Ética deontológica

Se no utilitarismo as ações são julgadas pelos seus resultados, na ética deontológica as ações são valoradas por si mesmas. Parte-se do pressuposto de que os efeitos das ações não estão sempre sob o nosso controle e o que importa, no final das contas, é a motivação do indivíduo. Kant é um de seus defensores.

O célebre imperativo categórico Kantiano é, em poucas palavras, o dever moral que emana da voz da razão. Não a razão do cálculo utilitarista, que leva em consideração os efeitos das ações, mas a razão que extrai a lei moral universal. Porque todo indivíduo é dotado de razão – e é disso que decorre sua especial dignidade – é inescapável que cheguemos a mesma conclusão sobre as leis morais. Não há relativismo em Kant, como alguns pensam, talvez por conta da afirmativa de que o indivíduo seja seu próprio legislador.

Ser o próprio legislador ou soberano, como ser racional, não significa balizar as ações em inclinações, desejos, preferências e interesses pessoais. Antes, pode-se ¬– e deve-se – agir contrariamente a eles, se assim ditar o dever (Aliás, essa visão se aproxima da ideia platônica da objetividade do bem.). Para Kant, ser livre não é fazer o que bem se entende.

Se apenas dou o troco correto em uma transação comercial para não ser censurado, ajo de acordo com a minha vontade, mas não de acordo com a boa vontade, como diria Kant. Para um observador, minha ação seria irreprochável. Porém, ela não está de acordo com a boa vontade, e, portanto, não é uma ação moral. A boa vontade nada mais é do que a vontade que se conforma com o imperativo categórico, com o dever. Nesse caso, deveria eu concluir que trapacear é errado em si mesmo, não porque posso ser flagrado pela polícia ou outro motivo exterior qualquer, baseado em possíveis efeitos de minha ação.

A autonomia do indivíduo decorre justamente da capacidade humana de dar a si mesmo a lei moral, sem injunções externas (daí a ideia de ser-se o próprio legislador). Parece claro, então, que há, pelo menos, duas alternativas para o indivíduo: agir considerando os efeitos das ações no mundo ou usar a razão para extrair a lei moral que valha por si e em qualquer circunstância (que seja, enfim, universal). No primeiro caso, minha motivação é externa; no segundo, não. Ora, quem adota a razão de decidir calcada em elementos exteriores, age, em verdade, sob influência, e, nesse sentido, não é livre. Por outro lado, quem age pautando-se no dever, esse, sim, é livre, pois extraiu, por si só, a lei moral a reger sua ação.

Assim, para a ação ser moral, não basta agir de acordo com a lei moral, é preciso agir por causa dela. Por exemplo, não seria moral fazer doação aos necessitados para galgar reconhecimento do público, porquanto, aqui, o elemento externo está presente. A doação seria moral se o indivíduo doasse para os necessitados porque considera que esse é o dever. A conformidade da motivação com a lei moral, portanto, é crucial, ainda que eu tenha inclinações contrariamente a ela. Ajo porque devo e reconheço isso, independentemente de qualquer coisa.

A ética Kantiana tem forte apelo democrático, por considerar que a dignidade da pessoa humana decorre da racionalidade do homem, ínsita a todos. Dessa forma, devemos tratar os outros não como meio para as nossas ações, mas como fim, do contrário estaríamos negando sua própria dignidade. Esse pensamento reforça a ideia de igualdade, ao considerar que há algo de fundamental na natureza humana, razão pela qual não poderia a lei fazer discriminações.

Obviamente, como qualquer filosofia, a visão Kantiana não está imune a críticas.

Erros fatais advindos de ações desastradas, mas cujo autor tenha praticado nas melhores das intenções, de acordo com o dever, passariam incólume de reprovação moral. Na concepção Kantiana, a motivação correta para a prática de uma ação seria suficiente como critério de julgamento moral, desconsiderando-se outros elementos relevantes, tais como a ponderação pelo indivíduo dos meios empregados na ação e dos possíveis efeitos da ação.

Ademais, Kant acaba por levar em conta as consequências das ações em sua formulação filosófica. Se não devo jamais mentir porque é errado, só posso ter chegado a essa conclusão por saber de antemão dos efeitos sociais nocivos que a mentira generalizada causaria. Esse ponto de vista faria a ética Kantiana se aproximar, de alguma forma, do utilitarismo de John Stuart Mill, que sustenta que o indivíduo pode se valer das regras morais, pois nelas estariam incorporadas experiências humanas que informam quais ações geralmente produzem os melhores resultados.

O sistema Kantiano, também, não fornece solução para os conflitos de deveres. Se eu prometo manter um segredo e um terceiro me pergunta sobre ele, não posso manter nenhum desses deveres (o de guardar o segredo e o de dizer a verdade) sem infringir o outro, o que inviabilizaria a universalização de minha ação.

Finalmente, sustenta-se que o sistema Kantiano é rígido demais, levando a situações inconcebíveis moralmente. Por exemplo, ele não flexibilizaria o dever de dizer a verdade, ainda que com o sacrifício da vida de inocentes (não mentir para um assassino serial a respeito do local onde se esconde sua potencial vítima). Essa interpretação, se procedente, tornaria situações repugnantes defensáveis do ponto de vista ético, enfraquecendo o pensamento do filósofo. Por conta disso, emerge o objetivismo moderado, por meio do qual se afirma que as regras morais são meras generalizações, e não imperativos absolutos. Como diria Sir William David Ross, elas compreendem deveres prima facie, isto é, aplicam-se à maioria das circunstâncias, mas podem ser flexibilizadas em situações extremas, sendo moralmente justificável a mentira para salvar alguém de um assassino serial.

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